Abstracionismo
De LUIS FERNANDO VERISSIMO
Gostara de ouvir do fotógrafo que eles viviam cercados pela arte. Não era só miséria.
Seu Virgílio estava acostumado com turistas visitando a favela. Ele era o único que ficava em casa durante o dia e passava o tempo sentado na frente do barraco, de calção e camiseta, fumando seus cigarrinhos e vendo o movimento. O número de turistas aumentara depois da pacificação do morro.
Os turistas vinham em bando. Alguns tinham até guias, que diziam aos turistas para onde olhar, e dizer hum ou ah ou meu Deus. Mas aquele turista parecia diferente. Para começar, estava sozinho. E em vez de fotografar o esgoto, as roupas coloridas penduradas e as crianças brincando na lama, fotografava paredes. Paredes. Parara na frente do barraco do seu Virgílio, apontara a câmera para um trecho da madeira que forrava seu exterior e clic. E clic e clic.
Só depois do terceiro clic o fotógrafo se lembrou de perguntar ao seu Virgílio:
– Dá licença?
– Hrmf – respondeu seu Virgílio, o que poderia significar sim ou não.
– Estou fazendo um livro – explicou o fotógrafo. – Se chamará Superfícies. Será só de coisas como esta sua parede. Viu como este pedaço aqui poderia ser uma pintura abstrata? A madeira estriada, a superposição de tábuas... Poderia ser um Burri.
– Um quê?
– Burri. Alfredo Burri. Abstracionista italiano.
– Ahn.
– Esta favela está cheia de coisas assim. Há Burris por todo lado. É só saber encontrá-los. E colagens? Materiais corriqueiros usados de forma não convencional, em montagens surpreendentes e esteticamente perfeitas. O que é uma favela, afinal, senão uma grande colagem? Arte pura! Vocês vivem cercados pela arte.
Seu Virgílio perguntou se o fotógrafo poderia lhe dar um cigarro. O fotógrafo não fumava. Depois de mais alguns clics, o fotógrafo agradeceu e começou a se afastar, mas aí deu uma coisa no seu Virgílio. Uma coisa que ele mesmo não saberia explicar depois. Deteve o fotógrafo com um gesto e disse:
– O senhor não quer entrar? Tem uma mancha na parede da cozinha que...
A pequena cozinha era a única parte do barraco feita de alvenaria. E havia uma grande mancha na parede da cozinha. Uma grande mancha multicolor causada pela umidade e por muitos anos de fritura no ar. Seu Virgílio apontou a mancha para o fotógrafo, que abriu os braços e exclamou:
– Manabu Mabe!
Seu Virgílio também não saberia explicar por que ficara tão feliz por ter um Manabu Mabe na parede, mesmo um Manabu Mabe feito de água infiltrada e fumaça. Nem iria contar para a Ernestina quando ela e os cinco filhos voltassem aquela noite. Sabia que Ernestina perguntaria “Manaquem?!” e diria “Isso é que dá passar o dia inteiro sem fazer nada”.
Guardaria aquela felicidade só para ele. Gostara de ouvir do fotógrafo que eles viviam cercados pela arte. Não era só miséria. Ou então, pensou seu Virgílio, eu também estou ficando meio abstracionista.
16 comentários:
Que maravilha, Peri.
Publiquei agora na Gráfica um ensaio sobre o assunto.
O melhor momento, saiba, é esse da troca com quem tambem vê naquilo o belo.
Vou publicar, citando a fonte, no meu blog o texto.
beijo!
Afiado e certeiro!
Uma delícia!
Fiquei a saber de Manabu Mabe a sua arte abstracionista.
Fiquei a saber que seu Virgílio era culto e poeta, mesmo que o não soubesse.
Só não fiquei a saber nada sobre a identidade do fotógrafo que não tinha um cigarro para oferecer a um ser que entendera as suas palavras.
Lina
Legal tua visita aqui ao Armazém.
Lindo texto mesmo. Muitas subleituras nele.
Vou olhar na Gráfica e use e abuse da postagem.
bj
Li
Afiadésimo e certeirésimo. Somos tanto o fotógrafo e o" seu ' Virgílio ....
João,
Recomendo muito o Luís Fernando Veríssimo ( filho do grande Érico Veríssimo ) hoje nosso mais afiado cronista, de uma produção constante e sempre brilhante .
Quanto ao fotógrafo , mesmop que anônimo, quem é fotógrafo se reconhece um pouco nele, apesar da falta dos cigarros.
Na verdade tudo é abstaccionismo, basta abstrairmos. Execelente conto de Natal.
Filho de Erico ?
Não fazia a menor idéia !...
João Menéres
Jorge
Até o concreto tem sua porção abstrata.
Pois é , João, filho e grande escritor, mais voltado para as crônicas de finésimo e sofisticado humor.
meio que na contramão da moral da história, lembrei do aforisma maior do Joãosinho Trinta:
"Pobre gosta é de luxo, quem gosta de miséria é intelectual".
Boczon, digamos que esse texto, numa leitura cuidosa, toca exatamente nessa frase do Joãosinho.
alo PERI
coincidencias...coincidencias.....
exatamente hoje postei um texto antigo meu "APENAS ARTE"......
aproveito para te cimprimentar pelo comentário teu numa postagem do Eduarco "varal" sobre vegetarianos...curto e afiado!
Excelente texto e certeiro o comentário do Claudio Boczon. Também sou leitor regular do LFV. Uma boa companhia nos voos transatlânticos.
Roberto
Fui lá ler seu ótimo texto ! Cita até o " A Palavra Pintada ", livto que eu gosto muito.
Pois é, deixemos a arte ir acontecendo silenciosamente, às vezes ela fisga alguém.
abraço
Paulo
O LFV é sempre uma excelente companhia, você escolheu bem.
O Boczon é um afiadíssimo comentarista dos blogs . E ótimo artista plástico, de Curitiba.
Inclusive numa postagem recente aqui do Armazém você verá que o The Peri S. C. Museum of Fine Arts fez a aquisição de uma obra dele.
Visite o blog dele, o Porão Abaixo, link aí nos meus favoritos.
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